quarta-feira, maio 3

na praça

passa o que passa
vem o que vem
a aurora de ninguém
na margem suja da praça
o chão de tristezas feito
as casas em desalinho
o céu de um azul quase perfeito
ao longe as curvas dum caminho
tudo é o que é
sem a máscara do querer ser
a porta umbralina do café
a tarde da gente a envelhecer
tudo passa tu vem
dentro da pequenez da praça
um mundo de ninguém

sábado, março 4

brandura

nas minhas mãos
espalmado sem a consciência das moedas para algodão doce
da infância
o sol
perde a sua forma característica
de papel vegetal amarrotado
e ganha a ultrapassagem da matéria
própria dos pensamentos mais desgarrados
em direcção do nada que envolve o estar aqui
o segredo mais íntimo de tudo
a papoila que cresce no fundo do horizonte
desconexa
pinga-me da testa
gotas aclaradas de suor
na tarde clave de sol
nas minhas mãos
amarrotada
como coisa velha
tão minha
quanto o ar que já respirei
no lado de cá do horizonte
esse mesmo ar vindo das estrelas
que todos os outros seres já respiraram
desde que as cordas do tempo
soam a harmonia que não se sente
mas que está
entre as mãos
e o meu sol
de algodão doce
e com cheiro a infância que não se deixou viver
e no umbral da porta
da casa que nunca habitei por ser antiga demais
uma velha africana fuma cachimbo
roída por dentro
pela saudade ardente
como esta rua é a negação daquela parte de África rodeada de mar e de bruma!
vivo na negação
da África insaciável
que canta cantigas de longe
e de terra empoeirada
alucinada pela chuva pesada
de desejos de todas as sedes
e não tenho a pele alada
África, África
voa, voa
daqui a nada