domingo, dezembro 28

26.

anjos do chão

os anjos são no reverso do chão
o continuado alvor do coração da treva
luz ferina que se abre
ao depois que está aceso na proa das barcas que parte
para além
são pois tudo o que do sonho se escapa
e torna a realidade um tecido de espanto
os anjos
céleres e baços
aos olhos continuados dos que sofrem

sábado, dezembro 6

25.

andamento

de mãos cerradas
o grito suspenso na garganta mantida
no berço da treva
quando assim sem mais
então tudo se abre em afastamento
um mar de não ainda abre-se de repente
e tudo se mantém na impossibilidade de atingir
a totalidade opalina dos enganos
homem a tudo revertido
despido de mais e de duração
cai no instante em que se entrevê o aberto
e há um rasgão na manhã que não vem
é uma presença de sal e negação
no imo das águas segura ao leito da treva
a dissolução não procurada
sossega-se de sangue a madrugada

24.

mordência

a caixa fechada depois dos desenganos
as gotas do sol secretadas no fundo
bem por debaixo dos lenços do adeus lançado ao vento
amestrados agora pela escuridão e a naftalina
em riste a cimeira alegria de ter adormecido
e caído no poço dos remorsos que se tapam durante
as vigílias quase repentinas
e nas paredes brancas de ser um
a humidade de haver pensamentos em maré e quietação
deixa as marcas dum abandono bafiento
e dormente a incandescência das horas
revezadas nos estilhaços das promessas

23.

alecria

o vinagre derramado dos olhos
espraiados na distância alastrada
alé do horizonte que se vê
dormência alucinada
dissipa a melancolia pegajosa que envolve a concretude
do aqui
eros irromperá talvez no fim
chispante alado crespado de dissonância
e os invernos entranhados da escuta
outro néctar se derramarão sobre a ausência

22.

retorno

na irrequieta estagnação no amar
todo o universo suspenso na fresta que há
na pontuação dos dias
cravados nas dimensões reversas da treva
há um vazio que se insinua na concretude mais compacta
o que não se dissolve é uma boca que assoma pluvial e queimada de sede e agonia
há que esticar a pele do peixe morto no luar
salgar-lhe as guelras para depois matar a fome ao descontentamento
e abrir os olhos ao dentro
a boiar na espuma de não ser de cá

21.

calêncio

uma prece o esquecimento
vagueiam homens no chão que ampara os dias
e os leva para o escuro do vivido a correr
onde as águas se consumam em chumbo e frialdade sem remorso
são retratos constantes do que se cala no fundo
amparam uma teia de luz ensopada de odores de continuação
são os que ficam e têm da morte a fechadura
o dentro e o fora com duas voltas da chave se reverte

20.

aerossol

é no estar ao sol que o tempo me seca na pele
e os esgares de fundo e traços findos me escrevem
os que foram meus anos e acenos de nunca há longes na carne e no rubor
das faces que sorvem o ar na manhã e na vacilação dos acentuados regressos
à planura do aqui quando o vento se aquieta e desgraça o fresco
dá para sentir o abandono a si das coisas fora dos livros de metafísica
apenas coisas que enchem o espaço e escondem o que não há no repleto que enche os olhos
e lhes dá a visão do compacto caos lento em que se vive
numa margem ocupada de impossíveis intervalos requebrados de silêncio
por dentro da escuta

19.

ligatura

ter a terra toda por terminação
nada ocupa o lugar do que não vem
a mão a mãe o inchaço
o corte de repente no braço que acena
ao longe o que não se tem
o que acabou ali no começo que havia
o mar é negro a lua jorra leite de cima
inunda-se o pranto de lavados enganos de ser sempre uma derrota
degolado cansaço a pele sobre a carne a tremer
no lado de fora do espaço

18.

sonoridade avessa à escuta

faz-se do som de dentro de si sem limites frásicos impossíveis
o que canta cala-se de si para além do canto e materializa-se na vastidão dos sonhos
não já homem sempre alado e calado de dentro
corta-se nas lâminas da língua estrangeira
e mudo de não ser ouvido música-se e de chofre no espaço é tudo
a ser engolido pelo abismo da poésis silvante

quinta-feira, dezembro 4

17.

cinemania

a vida tem efeitos especiais
feitos em desassossego e impermanência
salta entre cenas diversas e não se desmancha
presa por um fio que vibra sem nada
podemos engoli-lo ou enrolá-lo ao pescoço
para nos suicidarmos das coisas rectilíneas
mas permanecemos vários e inconstantes
cortantes por vezes com a garganta em desalinho
mas se acesos somos percutidos pelo que não se esvai
nas tardes sangrantes de ter que sim

16.

campos acesos de bruma

na bruma no desencanto desarmado de rijo
grito e grito e grito que sim
de rijo e aceso com manchas na luz da voz por ser assim
desmanchado de ventos recoberto de tormentas amarelas e rubras
cada som crescido é uma cor atirada para dentro da audição marítima
jorro e alva mandíbula desvirgulada de mansinho
com a manhã salutar e de par e par
de vagar o longe se encima de pranto
perdida a hora do embarque perpétuo
caiu no chão a mala mal cheia de brancos e azuis sapatos de andar

15.

máscara insone

vives mas estás nas viragens do tempo
és mas vives e estás para lá da vida singrante
plasmas-te de chão e luas por dentro do sol sedento
mas vives nas viragens do tempo outro e ausente
és plenitude recortada recordada dada acordada simplesmente

14.

interlúdico

silentes assentes em baixo do convexo
sustento de cânfora e incensos outros
rasgadas são grades e proximidades que calam
no riso o corte trespassa a segurança da língua em sopros
retirada do dito com ternura
canto sustentado no longo som angular
violinos sucessivos dissonantes precisos de sim
cercadura sem recantos
trinado certeiro em assimétrica alucinação

13.

v. o silêncio ritma

ossatura cristalizada no reverso do espaço
tempo retardado na dança do ser espraiar-se em estilhaços esfíngicos
o ente flutua na inconstância dejecto de mais e por enquanto permanece
um cristal aceso
dançar o ritmo insonoro
aumento e retardação
dada ausência símile de si
o lago e o rosto do lado desgosto alado vaporizado
a cair em sol de acordar de atacadores a passear-se a sós

12.

iv. infância forrada a nada e a tudo (em tudo/entrudo)

desgarrada
flores de aço parturientes gritos de mais
o regaço da vida infantina flauta inversiva
o ouvido
desescuta-se contra as paredes do tédio
escusado remédio de quem não se agita
ressuscita de pé e entretanto
todos os modos de soar são máculas descarnadas de si
agitam-se em redor sem cascas assomadas
crer somente sem o quê

quarta-feira, dezembro 3

11.

quando fui escravo

quando fui escravo
a fluorescência dos chicotes rasgou-me a pele saciada de sol
e da boca brotou-me o grito abortado de homem denegado
que nunca os chacais possam saciar-se de sangue
os homens putrefactos
seja deles apenas deles a desolação
podem fingir-se de mortos
cingir-se de auréolas e de glórias opalinas
que não seja seu o que não é do tempo
que não se apropriem da vibração das harpas
que tornará o vento premente
que não seja nunca deles a verdade do que sou
no sempre e nos ocasos

10.

saúdar os idos do nunca

nervo em fogo a lembrança do começo percorre todas as coisas
um coice de esperança desafogada de entranhas vasadas pela inversão
das horas em direcção ao dentro do fim
cheira ainda a gordura hepática o querer que o mundo tivesse um começo
as facas estão gastas pela jugular dos sacrificados
terrificamente aguardados na ante-espera dos que se esquecem
não há compromissos que lavem a estranheza do alvor da lua
no sorriso das mulheres quando são a presença do pristino

09.

retornação

nego e sigo dispo e cuspo
te no centro da avelutada grandura de rasgar os olhos na vértebra lancinante do horizonte
e as águas rasgam-se e em catadupas de exsudação silenciarmante
vertem-se de figuras veladas as vestais que guardam o resto da sagração
do mundo e da espera sudário do descompasso

e não há depois
não há o que acrescentar à sede impressionada de cima e de baixo pela luz que passa pelos bocados do tempo
vitral de descontinuação e clepsidra sangrante
mênstruo rubificado na duração da increpitude

08.

sou cigano

sou cigano e no assim
dispo dentro de mim a capa de silenciado
e danço
sou um com o espaço gume
e sangro-me rubro ébrio maldito
e dou-me a beber aos olhos negros da madrugada
despida e alada rasgada em flor
exangue do amor
parto na lua e na melopeia das giestas ermadas pelo vento

07.

iii.algicídio

os violinos incapacitam a desesperança das trevas
são luz chispante de fogo e rasgura
vibram látegos doirados de dentro da escuta
um ermo a sorvência da necessidade
param no pranto as dores desviadas da carne pulsátil
só os nenúfares dão à luz a luz deserdada
depois de compactada a lama na cadência das trevas
tudo o que a morte tocou vai para o fundo e é enraízado
as línguas das fomes cegas sorvem até o som pútrido da saciedade

06.

larmen(tos)

sulcam os dias de breves e prementes
as sementes de sensoriais incomburências
sons somente que não percutem mais que a distância
há no toque de finados da carne sorvendo-se
um apelo de antes da escuta
até que o mar venha de dentro sagrado e devoluto
submergir o desejo
e reabrir a janela de ser gente com a roupa engomada

05.

abyssus

arrancada a pele de chofre sobre o si
despegada de tudo
arde de longes e agulhas de gira-discos na infância
pedaços de vidro de ter visto a morte como ela não é
espalham-se em redor da estimativa de ir lá
mas como?
é sempre aqui que as feridas se sangram
amor-te amarga norte tragada morte amato-te
e sei os teus sulcos liquefeitos do dentro

04.

despitura

despe-se
e todo o mundo se cobre duma luz de não ser visto
uma cegueira espumosa irrompe
o desejo é uma fuga e um fiat
o infinito faz arder a aparência das coisas e o que elas têm dentro
lastro de papel e de presença assídua
só o gume que cortou a púbis pode degolar o canto
essa castração impossível
que rompe no silêncio a plenitude do audível

03.

Interpelação

e tu menina
virgem da continuação
como te vês no espelho negro do desaguar dos vindouros?
trazes no ventre um impostor
não nascido não parido parricida e devorador dos tempos
o negrume e a luz que rasga os olhos protrépticos dos infelizes...
a faca faleceu no despontar das pétalas graves da maresia frente à ilha dos degredados
lá no longe onde ninguém habita errando e aberto em lâminas fulgurantes
és a recusa do prazer e da agonia
larvam-te as horas de pontadas de chá fumegante
na pedra-pomes de te quereres plena
és a face secreta da lonjura
pingam de baixo os sonhos vermelhos de não ver para lá
és a encarnação do desejo do homem de hoje
esse espalhafato de desejo e fogo preso
na hora de sempre
afundando-se no prazer sem mais
as alvura da encenação repleta de si

02.

ii. afrodisia

A música do mundo, o colapso da sonoridade, a anamorfose sorumbática dos ecos no interior da espiral de pétalas carnais do nosso ouvido interno...
a música tem propriedades erotopoiéticas, dá-nos a sentir a não necessidade de termos uma alma separável da alma do mundo, no sapateado galopante de sermos nós no esconso de Deus, a superfície da terra, sobre as funduras parturientes que se regorjitam na boca castrada dos vulcões, o cântico impossível da lava e do fogo, a sinfonia do enxofre e das cinzas.
É terça-feira, de vez em quando. Uma melodia que não se conforma com a partitura pendurável dos calendários.

01.

i. limiar

Somos todos e ninguém.
enraizados no nada, somos flores do impossível
e as tardes pesam sobre a impermanência do mundo
começa cedo a implosão da aurora
expulsos da ideia de termos um paraíso além de tudo
como poderemos livrar-nos da sorte dos náufragos?